Antes de se tornar mundialmente famoso como escritor e jornalista, com destacados trabalhos como correspondente de guerra, Edgar Parks Snow foi um personagem do seu tempo. Nascido em 19 de julho de 1905, no Sul dos Estados Unidos, bem na época que seu país emergiu à liderança mundial, Snow experimentou a juventude nos loucos anos 1920, até tomar um navio rumo ao Extremo Oriente “procurando pelo glamour do Oriente – em busca de aventura”.
A experiência radical de Snow na China, onde ele testemunhou e cobriu a terrível fome do Noroeste, e seus 10 milhões de mortos, o moldou para sempre. Após isso, o dandismo deu lugar a um militante e jornalista ímpar, responsável por apresentar ao mundo Mao Zedong e os principais revolucionários chineses em seu livro A estrela vermelha brilha sobre a China — que inspirou intelectuais do porte do marxista indiano Vijay Prashad e Angela Davis.
Snow jamais foi um propagandista chinês, mas sim um amigo sincero que sempre buscou trazer ao mundo a verdade dos fatos sobre a milenar — e gigantesca — nação asiática. E que não se diga que não tomou lado, sobretudo quando a China se viu invadida pelo Japão. Snow foi uma das vozes mais ativas no mundo para denunciar uma das mais bárbaras agressões ocorridas na Segunda Guerra Mundial.
Por outro lado, ao narrar a história de Mao e seus camaradas, Snow demonstrou um raro senso de tendência histórica. Contrariando o pensamento dominante nos anos 1930, que em regra duvidava dos vermelhos chineses, ele percebeu que a História universal se movia ali. E não foi qualquer movimento, como podemos perceber, ainda mais pelas mudanças dos últimos anos.
“A China amargava o século de humilhação desde a derrota para os ingleses na Guerra do Ópio, mas pela primeira vez, eles encontravam uma luz no final do túnel.”
Hoje, enquanto os Estados Unidos, temerosos com a perda da sua hegemonia, acenam para uma nova Guerra Fria, precisamente contra a China, é irônico lembrar que foi um americano que narrou o ponto de virada dessa história: a China amargava o século de humilhação desde a derrota para os ingleses na Guerra do Ópio, mas pela primeira vez, eles encontravam uma luz no final do túnel.
Nas montanhas do Noroeste chinês
Em 1936, Edgar Snow chegou às montanhas de Yan’an, na província de Shaanxi. Ele buscava os comunistas sobreviventes da Longa Marcha, que após 12 mil quilômetros de marcha forçada, vieram do Sul, escapando das campanhas de “cerco e aniquilamento” promovidas pelo governo central de Chiang Kai-shek — que faziam jus ao nome, punindo, inclusive camponeses que davam abrigo ou tinha qualquer relação com os comunistas.
Na Longa Marcha, depois de milhares de baixas, “por meio de muitas dificuldades, através dos mais fundos, longos e perigosos rios da China, enfrentando algumas das passagens montanhosas mais altas e perigosas”, os comunistas chegaram ao lugar onde a civilização chinesa nasceu há milhares de anos. Eles se recolheram nas montanhas acima do entroncamento do vale do rio Amarelo, não muito longe da Mongólia e de um dos limites norte da Grande Muralha.
Não faltavam mitos e lendas sobre os comunistas chineses, entrincheirados em sua nova base revolucionária, enquanto estavam cercados pelo Exército do Nordeste, o Dongbei, que antes havia fugido da Manchúria ocupada pelos japoneses — em um retirada vergonhosamente, secretamente ajustada pelo governo central chinês com os japoneses como veio a se descobrir depois da Segunda Guerra.
“Chiang, apesar do cerco do Japão, insistia que era preciso primeiro derrotar os comunistas. E para isso contava com “conselheiros militares” alemães que recorreram a métodos genocidas.”
O generalíssimo Chiang governava com mão de ferro a China desde 1928, chegando ao poder após o rompimento com os comunistas, a quem ele passou a perseguir mortalmente. Antes disso, os comunistas coabitavam, mediante dupla filiação, o Partido Nacionalista, o Kuomintang — em uma colaboração iniciada anos antes por Sun Yat-sen, o seu fundador, que abraçou a luta anti-imperialista em aliança com os soviéticos.
Contudo, Chiang, apesar do cerco do Japão, insistia que era preciso primeiro derrotar os comunistas. E para isso contava com “conselheiros militares” alemães que recorreram a métodos genocidas. Um deles, o general von Falkenhausen, quando retornou à sua terra natal, serviu às hordas de Adolf Hitler e foi governador militar da Bélgica durante a Segunda Guerra Mundial.
A estranha estratégia de Chiang despertava dúvidas e indignação nas massas e quadros chineses. Enquanto recursos massivos eram gastos para aniquilar os comunistas, o Japão avançava aos poucos sobre o território chinês. Por isso, um complô já se formava nas próprias fileiras nacionalistas para pôr fim à guerra civil e iniciar uma política de resistência nacional — e isso foi fundamental para que Snow conseguisse chegar até a base vermelha.
Naquela altura, Snow não era nenhum principiante em termos de China. Ele havia chegado ao país em 1928, tinha conexões com a intelectualidade local e seus movimentos, tendo escrito um perfil de Song Ching-ling, a viúva de Sun Yat-sen e futura aliada dos comunistas, além de ter conhecido o Sul e o Noroeste do país.
Antes disso, Snow conheceu a Birmânia — atual Mianmar — e a Índia, tendo contato com Mahatma Gandhi (a quem ele entrevistou novamente em 1948). Ali, a tensão no Noroeste chinês era diferente dos tempos quando Snow conheceu a região. Em 1929, durante a Grande Fome do Noroeste, mais de 10 milhões de inocentes morreram, graças às ações e omissões dos senhores da guerra.
“O mundo olhava atentamente para a Guerra Civil Espanhola e para os rumos da União Soviética, não para a distante, complexa e exotizada China.”
Naquele contexto, figuras como o “jovem marechal”, Zhang Xueliang, ou o general Yang Hucheng, comandantes militares no Noroeste, já haviam dado seu giro político. O marechal Zhang, que teve relações carnais com o fascismo italiano, chegando a ter um affair com a filha do ditador Benito Mussolini, Edda, já ali, se reunia com conspiradores contra o governo central pronto a fazê-lo a entrar em choque com as forças do Eixo.
Encontrando Mao Zedong
Snow chegou a Yan’an em uma época que os relatos sobre os comunistas iam de narrativas fantásticas à propaganda anticomunista vulgar, passando pelo folclórico e o mítico. Fora isso, havia a tensa discussão sobre a Revolução Chinesa que atravessou — e aturdiu — a Internacional Comunista em 1927, na esteira do fracassado levante de Xangai. As discussões sobre China foram rapidamente deslocadas para a disputa entre Stalin e Trotsky e seus apoiadores.
Assim, a China se tornou apenas um cenário para uma disputa russa sobre os destinos do comunismo mundial. Nem seus atores internos, nem a dinâmica de sua luta de classes, apareciam não mais do que superficialmente. O mundo olhava atentamente para a Guerra Civil Espanhola e para os rumos da União Soviética, não para a distante, complexa e exotizada China.
No entanto, algumas obras foram escritas nos anos 1930 a respeito da Revolução Chinesa. O Personal History de Vincent Sheean — no qual Alfred Hitchcock se baseou para realizar o Correspondente estrangeiro –, mas principalmente o clássico China’s Red Army Marches de Agnes Smedley — o segundo livro dele sobre o tema, este mais robusto, tratando do duro cenário pré Longa Marcha.
Snow, tinha, contudo, uma missão em 1936: fazer os líderes comunistas chineses falarem e, assim, relatar ao mundo quem eram eles. Mas havia uma dificuldade adicional em fazê-los falar da vida pré-partido, onde era como se renascessem como parte da estrutura coletiva do partido. Como apresentar ao mundo esses fantásticos personagens diante de sua — explicável — desconfiança?
“Mao contava com pouco mais de 40 anos, enquanto Snow tinha pouco mais de 30. Mao havia se tornado líder incontestável dos vermelhos chineses, ainda mais depois do milagre da Longa Marcha.”
Diante de Mao, Snow logo percebeu que ele “ficou desconfiado em relação à necessidade de fornecer uma autobiografia”. Snow retrucou que “as pessoas querem saber que tipo de homem você é” e que “você também poderá corrigir alguns dos rumores falsos que circulam” — e assim conseguiu extrair de Mao detalhes únicos que iam de sua infância até aquele momento, passando por toda sua formação política.
Naquele momento, Mao contava com pouco mais de 40 anos, enquanto Snow tinha pouco mais de 30. Mao havia se tornado líder incontestável dos vermelhos chineses, ainda mais depois do milagre da Longa Marcha e era um comandante experimentado como poucos. A “calmaria” posterior a Longa Marcha permitiram que Mao pudesse voltar a escrever e produzir intelectualmente. Snow tinha diante dele um gigantesco furo jornalístico.
Um furo, literalmente, histórico
É graças a Snow que se soube, pela primeira vez, das origens de Mao Zedong. De uma infância difícil na qual ele e seus irmãos viviam à sombra de um pai rigoroso — e, por vezes, violento — que era contrabalanceado pela mãe amorosa e devota budista. A família Mao, contudo, prosperou materialmente em Hunan, no Sul da China, em tempos de crise aguda.
É graças a isso que Mao pode estudar e se choca com o mundo exterior, para muito além de sua vila natal, Shaoshan, uma comuna rural nas montanhas. Mais tarde, na capital da província, ele opta por uma formação pouco usual para um revolucionário, a de pedagogo, mas prossegue seus estudos em paralelo com um autodidatismo voraz, que o coloca em contato com o pensamento reformista local, mas também com as ideias revolucionárias do Ocidente e o movimento insurgente da própria China.
“Mao confessa a Snow até sua simpatia às ideias anarquistas, sob influência do então estudante Zhu Qianzhi, logo no início de sua estadia em Pequim.”
Antes de se tornar marxista, a cabeça de Mao “estava cheia de uma mistura curiosa de ideias sobre liberalismo, reformismo democrático e, também, socialismo utópico”. Até que ele segue a trilha natural até Pequim, depois de formado, onde encontrará seu professor mais querido, e pai de sua primeira esposa. Mao confessa a Snow até sua simpatia às ideias anarquistas, sob influência do então estudante Zhu Qianzhi, logo no início de sua estadia em Pequim.
Tudo isso antes do “verão de 1920”, quando Mao declarou que ele se tornou “em teoria, e de certo modo na prática, um marxista”. E de lá adiante, a história é conhecida, com Mao integrando a formação original do Partido Comunista, sua dupla filiação no Kuomintang e sua fuga para as montanhas do Sul, após o desastre de 1927, a vitória na disputa interna e, o mais importante, o êxito da sua linha contra a repressão em massa do Kuomintang nos anos 1930.
O relato de Mao a Snow atravessa sua formação de leitor voraz, que o faz um eclético conhecedor do romance chinês e da poesia do período Tang, um estudioso detalhista tanto da filosofia do seu país quanto da ocidental — até chegar em Marx e Lenin e nas atualidades do marxismo. Isso tudo e um pouco mais, antes do ano chave de 1936, quando os comunistas chineses saíram das cordas.
Snow ainda falaria com Zhou Enlai, o futuro longevo premiê da República Popular da China, Peng Dehuai e Lin Biao, que mais tarde seriam marechais, além de outras lideranças e figuras históricas — como Xu Teli, o pedagogo vermelho, ou Lin Boqu, homem forte das finanças, dentre outros — e faria um raio x da área controlada pelos comunistas. O drama revolucionário chinês era apresentado de vez ao mundo, com seus personagens expressivos revelados.
Em dezembro de 1936, Snow seria testemunha do “incidente de Xi’an”, quando Chian Kai-shek foi preso pelos seus próprios homens, em conluio com os comunistas, para restabelecer a Frente Unida e resistir ao Japão. Mas a história de Snow com a China iria até o fim de seus dias. Mesmo depois do que foi relatado em A estrela vermelha, ele seria uma das vozes mais expressivas denunciando a invasão japonesa e ajudando a furar isso com as cooperativas industriais.
“Os comunistas chineses, depois de uma feroz resistência contra o invasor japonês ainda enfrentaram anos de guerra civil. Mao saiu vitorioso e Snow, não tardaria, se tornou perseguido político nos EUA por causa do macartismo.”
Snow ficará na China ainda até 1941, ao lado de sua então companheira e colaboradora Helen Foster — ela também uma pioneira na cobertura da revolução no Extremo-Oriente. De volta aos Estados Unidos quando o conflito piorava, Edgar e Helen se separaram, e ele se tornou correspondente internacional do Saturday Evening Post em plena Segunda Guerra Mundial.
Os comunistas chineses, depois de uma feroz resistência contra o invasor japonês ao longo de oito anos, ainda enfrentaram mais quatro anos de guerra civil. Mao Zedong saiu vitorioso e Snow, não tardaria, se tornou perseguido político nos Estados Unidos nos tempos do macartismo — razão pela qual ele se muda para a Suíça com sua segunda esposa. Ainda haveriam mais visitas e entrevistas nos anos seguintes, como na célebre entrevista gravada em 1965 com Zhou Enlai e um precioso relato de uma conversa com Mao Zedong ocorrida na mesma viagem.
Snow seria uma das vozes mais autorizadas a falar sobre China no Ocidente. Sua morte, em 1972, ocorreu ironicamente poucas semanas antes da visita do presidente Richard Nixon à China. Uma ironia do destino, porque foi sob o governo republicano de Dwight Eisenhower, com Nixon como vice, que ele foi perseguido. Nada disso muda o curso da história que Snow ajudou a relatar e, portanto, a construir como um dos gigantes do nosso tempo.
Sobre os autores
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.